quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Clarice Lispector Кларісе Ліспектор

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e
sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua
presença.
Me dê a coragem de
considerar esse vazio
como uma
plenitude.
Faça com que eu seja
a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em
êxtase.
Faça com que eu possa
falar
com este vazio
tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e
embala.
Faça com que eu tenha a
coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas
ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não
me destrua.
Faça com que minha solidão
me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha
a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar
com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de
tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de
pensar.

2 comentários:

H. Henrique disse...

De braços abertos, pode ter certeza...

Polly Ana disse...

Clarice, como sempre, nos surpreende com seu lirismo poético,em uma escrita que inscreve seu próprio corpo e voz. Nesse texto é clara a imagem de Deus não como uma instituição religiosa e dogmática, mas sim como uma imagem cristalizada que merece a problematização. Lispector agarra a figura de divindade que embasa o sistema patriarcal e o mostra o que ela ser oprimido e feminino é capaz de fazer, para isso ela formula seu texto tal qual uma prece, como se estivesse louvando este ser criado à luz do sistema que a oprime (e tantas outras por aí!)e esvazia essa forma de sentido, ou seja, a poetisa agarra uma prece que tem como pressuposto louvar a divindade e com este formato textual a utiliza para a crítica a esta mesma entidade; ocorre o processo chamado morte do sagrado: O sagrado morreu em seu significado, as pessoas não sabem o que existe apenas seguem sem questionar; o sagrado morreu sim, no entanto há uma outra coisa em seu lugar, é o sagrado 'esvaziado' de significado, seja pela ideologia de um sistema, seja pela falta de tentativa de reencantamento de um mundo que oprime e massacra a outra face dos binários: a mulher, a lua, o misterioso, o subjetivo...
"Receba em teus braços o meu pecado de
pensar."